sexta-feira, 7 de junho de 2013


Vai mulher com teus olhos de urze
e eleva-te no rasto dos gansos selvagens.
Leva o teu menino imberbe
a pervagar  nas insígnias do sonho.
No cimo da montanha
espera-te um barco para velejar a tua missão.
Se água não houver
mantém à tona do olhar, o impossível;
põe depois o teu menino no barco
e leva-o às costas na rota das estrelas.
Ou deixa que dos olhos te rebente
um rio de águas em combustão.
Aí em cima
 desafia os demónios a cegar-te
frente à constelação de peixes
que respira veloz  no seio do limo.
Só então deves regressar ao chão com teu menino
e suster para sempre a força da vida num sonho
para quando o fôlego das mãos

se despenhar à boca dos dias.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

POR TI

Por ti
me desabituei de nimbar a lua.
Fiz versos na cratera do vulcão
e queimei adjectivos na lava.
Por ti
empunhei em riste
o sabor amargo do silêncio
e rasguei a voz matinal do búzio.
Por ti
fecundei mil ideias
e por ti
as abortei na sede das madrugadas.
Por ti
depus no destino
o amadurecer do fruto
ou o fruto a apodrecer.


sexta-feira, 17 de junho de 2011

SEM RETORNO


Um dia confiei no destino
e atirei ao rio trunfos
que andava a deixar escapar.

O rio é um curso de água livre
(assim me ensinaram na primária)
mas esqueci-me que
quase todos os rios
se vão deslaçar no mar.

E esqueci-me também que o mar
sendo tão cheio de peixes e de água
se torna voraz e muito sedento.

Assim, numa das suas ânsias
engoliu todos os trunfos que lá foram parar
e hoje
só hoje reparei
que nenhum deles ao rio pode voltar.

MV

domingo, 29 de maio de 2011

FAREI APENAS TUDO ISTO


Hoje levantei-me e fiz a cama.
Uma perfeição. Sacudi e estiquei os lençóis.
Até sacudi os tapetes e alinhei-os simetricamente.
Abri as gavetas e organizei roupas.
Não lhes deixei uma única prega.
Bem empilhadinhas. Nada fora do lugar.
Também pus a mesa com esmeradíssimo cuidado.
Toalha limpa a condizer com os pratos. Como eu gosto.
Hoje fiz tanto. Hoje não fiz nada.

Amanhã hei-de voltar a fazer a cama.
Hei-de sacudir os lençóis e
deixar sair tudo o que incomoda o coração.
Os tapetes, esses, vou sacudi-los
tirar-lhes as poeiras que ficaram dos sonhos.
E depois hei-de alinhar tudo o que sobrar.
Quanto às gavetas
hei-de misturar as peças de mangas compridas,
com as de mangas curtas e com as de cavas.
Hei-de fazer pilhas tão  desorganizadas
que arrepiarão os olhos de quem as possa ver.
Hei-de pôr a mesa, sim. Com uma toalha qualquer.
E em vez de lhe por pratos
hei-de pintá-la de lírios, de rosas e de papoilas
e saborear os cheiros que me crescerem nos olhos.
Amanhã não farei nada. Farei apenas tudo isto.

MV

sexta-feira, 6 de maio de 2011

TACTEAR-TE


Quis tactear-te
no princípio e no fim
do que não se via.
No imenso nublado da noite
encontrei olhos cegos
mãos paradas e mudas
vozes taciturnas
na recta das palavras.
Quis tactear-te
dentro da terra verde
e impenetrável
fora do espaço azul
onde não havia porta.
Quis tactear-te
por todo o lado
e não te encontrei.

MV

sexta-feira, 8 de abril de 2011

OMBRO VAZIO


"MULHER" de Maria Dulce Ferreira
(Obrigada Dulce pela ternura do gesto.)



O ombro em que lhe pousou a lua
está vazio.
Só uma sombra infinita o povoa
involuntariamente caída
das insónias sucessivas das rosas.
Um ombro que
por sistema
convoca o silêncio
o frio
e que mudo
arranca memórias
do desencontro de estrelas.
Poeiras no tempo
no centro do desconforto
de um ombro vazio
de calor e luz.

MV



segunda-feira, 28 de março de 2011

CÍRCULOS DA NOITE


Quatro invernos de estátuas passados
enquanto as mãos rasgaram caminhos
talvez a cumprirem penitência.

No mistério das sombras
ela solta a língua:
lua lírio brisa
veleiro sonho.
Diz qualquer coisa.

O eco solta-se contra o tempo
morde-a e ri
ri até que as gargalhadas assustem os pássaros
e a levem enjeitada nas asas.

A lua nasce desassossegada
entoa brilhos desconcertantes
e o perigo rompe nas noites.

Deixa-se seduzir
nos círculos que a noite desenha.

A poesia exacerba-lhe os desejos das mãos
e depois corrompe-lhe a dureza da razão.

MV

quarta-feira, 16 de março de 2011

O MEDO NÃO DEIXA VIVER


Deixa sair das nuvens uma água
que te molhe a pele
e te abra os poros
para que deles saiam remorsos
do que ainda nem sequer fizeste.

Deixa passar a água do mar
sobretudo se ela vier em ondas
para te levar as incertezas
do que pode ou não acontecer amanhã.

Deixa atear o lume
e permite-lhe que queime o lacre do preconceito
que te fecha o coração.
O coração quer-se solto que nem ave de campo.

Deixa escancarar as portas da mansão
onde  te habituaste a cristalizar  receios
que te atacam, tal garras de fera.

Deixa rebolar nos seios
o desejo do beijo, da carícia, da língua.
Fecha os olhos se não queres ver,
mas deixa.

Deixa que o óbvio se torne não óbvio,
se isto ou aquilo ainda não aconteceu.

Deixa que tudo isto aconteça
e deixa que aconteça muito mais.

Deixa-te levar no voo do pardal,
mesmo que te canses
mesmo que adormeças.
O pardal voa sem medo
mesmo que tenha de suspender o  voo
ao aviso do espanta-pardais.
Acredita, será fugaz esse momento.

É que o medo não deixa viver.

MV

terça-feira, 8 de março de 2011

MULHER

Às vezes
a lua hipnotizada pela pulsação do mar
derrama tranquilidade sobre o chão.
Os corações ataviam-se de ternura
cruzam voos com precisão.
A boca engole a tristeza
em rolos imensos de saliva.
Os olhos então afagam a vida.

Às vezes
o ventre do pensamento pare ideias grotescas,
ignóbeis
turvas
iradas
desalentadas.
Atravessam a crosta do coração
revolvem o sangue
bombeiam atitudes irascíveis
como a ferocidade das ondas.
Os olhos então mordem a vida.

Sou sempre a mesma
e por isso proclamo:
sou fraca e sou forte
sou água e sou terra
assim o vento me empurre
para campos de tileiras
ou para machados de guerra.

MV

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

EMPRÉSTIMO


Escapou-se-me o lápis dos dedos
em escorregadela mansinha
Deslizou para a frente e para trás
deixando um labirinto de pontinhos
Azuis
Verdes
Castanhos
De cores que eu não conhecia
Os olhos abriram-se muito fundo
para além do que viam
Os pontinhos piscaram
dançaram para cima e para baixo
para ali e para aqui
Ao cair da lua
ajeitaram-se certinhos
e num canto do papel escreveram
que quando a manhã se levanta
há sempre um pássaro
que empresta ao dia
um canto de alegria

MV