sexta-feira, 5 de setembro de 2008

ARTESÃ



…E sento-me cá em baixo. Como se estivesse lá em cima. Com os olhos ávidos lá de cima.

Olho. E sinto o vento a atravessar o olhar. E é ele que me leva o olhar por muitos caminhos lá em cima. Caminhos que estão sozinhos, ou mesmo que não existem.

O olhar parou lá em cima. Ficou lá naquele espaço ilimitado. Não sei se hoje é azul ou branco, porque vejo muito azul e muito branco. Não sei mesmo se o azul mora no branco, ou se o branco mora no azul. Sei apenas que essas duas cores marcam o céu, que está calmo. Muito calmo.

O branco mexe-se. Quase parado. Molda-se em formas. Formas distintas, ou formas indistintas, sem contornos visíveis. Hesito o meu olhar. Não sei a qual delas me hei-de fixar. Resolvo-me. Agarro as nuvens a que os artesãos do céu ainda não deram forma.

E transformo-me eu numa artesã. A artesã das nuvens.

Sinto as mãos a mexer, mexo-as mesmo paradas. Ponho os olhos nas mãos e tento desenhar. Um avião interrompe-me o olhar, o desenho. Fixo-me no rasto. Atravessa as minhas nuvens. Sei que choram em silêncio. Sei que riem caladas. Foram atravessadas. Foram rasgadas em rasgões que não se vêem, mas que estão lá.

Depois já se esfumaram todos os rastos como se a noite os tivesse engolido.

Prendo-me outra vez nas nuvens. Desenho uma mancha branca. Prego-a ao olhar num trabalho difícil. Já não sou capaz de a soltar. Desliza como se estivesse quase parada. Quase como se não se quisesse ir embora. Fixo-a, não a largo. Dou-lhe corpo. Um corpo suave. E fico com ela cá dentro de mim. Dentro dos meus olhos.

Depois as mãos não sabem acabar de a desenhar. Vou escrevê-la. Vou dar-lhe palavras. É branca, muito branca, tem o corpo de quem já existe. Repousa. De costas. Vejo-lhe os braços. As pernas que já não existem. Foram percorrer outros caminhos, outras distâncias, outros olhares.Talvez um dia as cole neste corpo branco que hoje deixo dentro de mim. Não tem olhos. Mas eu vejo-os. São intensos e escuros, brilham melancólicos. Falam palavras numa linguagem que não entendo. Numa língua que resolvo inventar e que traduzo assim:

“Viajo. Viajo. Viajo neste azul. Não sei se é mar ou se é céu. Não importa. Viajo. Viajo as emoções. Viajo a noite e o dia. Viajo só e com os outros. Faço encontros encontrados e desencontrados. Viajo a minha vida. Viajo a vida dos outros. Encontro vidas. Desencontro vidas. Mas viajo. Viajo sempre. Procuro sentidos. Sim, sentidos que valha a pena serem vividos. Sentidos da vida.”

Largo os instrumentos de artesã das nuvens, pego nos instrumentos de artesã da vida. Guardo a nuvem dentro de mim. Levanto-me. E ponho-me a esculpir o sentido da minha vida.


MV


2 comentários:

mundo azul disse...

...esculpir as nuvens! Penso que quase todos nós, já fizemos isso um dia... Ficar olhando o céu e descobrindo imagens!

Bonito o seu texto! Despertou-me lembranças da infância...


Beijos de luz e o meu carinho!!!

f@ disse...

Fascinante este texto... que diz as nuvens a brincar no céu da vida...
beijinhos das nuvens