quinta-feira, 31 de julho de 2008

CEGUEIRA

Não sei se o meu espelho
espelha bem o que vê.
Será que a moldura o está a aprisionar
e o EU não consegue mostrar?

MV

quarta-feira, 30 de julho de 2008

ESCADAS DE LINHAS

As linhas do meu caderno são escadas.
Começo a descê-las devagar,
sorvo o cheiro da madeira,
inebrio-me nas rectidão azul dessas linhas.
Começo a sentir-me cansada
latejam-me as têmporas
sento-me na linha vinte e um
deixo o corpo descansar.
Guardo nos olhos o que já tive de escalar
neste tempo fugaz que me habitou,
lembro os riscos que me entretive a traçar
neste tempo sem tempo
onde a penumbra se instalou.
Desço mais algumas linhas.
Cambaleio em ondas difusas
oiço as escadas a ranger
oiço os queixumes da linha vinte e um
com tanto por preencher!

MV

terça-feira, 29 de julho de 2008

ANDORES

Ponho os olhos inquietos naquela procissão.
Leva dois andores muito distintos:
rosas vermelhas aveludados rasgam a serenidade
papoilas sedutoras incendeiam a procissão.
Limpo o pensamento com água asseada
esfrego-o com cristais de mar.
Hesito.
Não sei em que andor hei-de pegar.

Ofereço o ombro tímido às rosas
ponho o ombro atrevido no andor das papoilas
ofusco-me naquele mar de confusão
fogem-me as forças, impedem-me de continuar
peço desculpas aos andores.
Volto as costas e vou-me deitar.

MV

domingo, 27 de julho de 2008

FOLHA

Uma folha mascarou-se de ritmos brilhantes,
da textura das rosas
de sons azuis e calados,
e viajou no dorso de um condor
para além do que é permitido viajar.
Rompeu a neblina do impossível
a névoa do tempo obscuro
a fronteira do improvável
instalando-se na canção do amor proibido.

MV

sexta-feira, 25 de julho de 2008

CATAVENTO

O vento sibila dando ordens ao catavento
“Gira para norte, gira para sul
Gira a gritar, gira a sussurrar”.
E o catavento gira tanto
que as palavras se começam a enovelar.
Gira com raiva
emaranhando as sílabas na poeira do ar.
Gira batendo nas frases
que ninguém pode escutar.
O catavento quer parar
precisa de descansar.
Iludiu-se.
O vento arranha cada vez mais
enrola as palavras
não as deixa soltar.
Como é que as palavras se hão-de alinhar?

MV

quinta-feira, 24 de julho de 2008

VEZES DE MAIS

Já são muitas vezes
vezes de mais
em que os meus olhos
se arrependem e gritam não
se espreguiçam com lágrimas
se recolhem sem querer ver
esta rodilha pintada
de branco e preto
de tudo e de nada.
Recolhem-se
quando acorda o dia,
mostram-se quando
a noite se levanta
e, então,
procuram consolo
na lua ardente
ou na lua vazia
ou na lua traidora
ou na lua cheia
mas…nada!
E depois estendem-se
por caminhos improváveis.
E começa a doer
a doer muito.
E a luz que mora no peito
tortura-se e apaga-se
com brindes
de tanto e de nada.
Já são vezes de mais!

MV

quarta-feira, 23 de julho de 2008

ENTRE O QUERER SER...

Entre o querer ser
e o não querer
existe a cordilheira
de traços contínuos
e descontínuos.
Salto ou desisto?
Continuo a viagem dentro de mim
ou simplesmente me quedo
no descontínuo da cordilheira.
Ultrapasso os limites
da minha existência real
e fujo para a minha existência irreal?
E assim
não sei se sei ser
o que sou
nos limites dos meus prazeres
na sombra do meu querer.

MV

terça-feira, 22 de julho de 2008

CAEM PEDRAS

Do céu emergem pedras polidas.
Ofuscam, cegam
rasgam a calmia da noite
ziguezagueiam em ventos enraivecidos
deitam-se no chão da terra
e ficam quietas e ficam mudas.
Trazem a ilusão a esvoaçar nos olhos cegos.

MV

segunda-feira, 21 de julho de 2008

SAUDADE

Nasceram-me flores nos olhos
para dar cor ao meu jardim,
Nasceram-me sabores indiscutíveis na língua
para apalpar os teus lábios.
Nasceram-me tranças acetinadas nas mãos
para te prender, meu amor.
Nasceram-me asas nos pés
para percorrer distâncias… paralelas
sem princípio nem fim.
Nasceram-me saudades na pele
de me encostar ao teu peito.
E com toda a razão
fugiram as flores, os sabores,
as tranças, as asas
deixando os meus versos em branco.
Só ficou a palavra SAUDADE.

MV

domingo, 20 de julho de 2008

O PALHAÇO DO CIRCO DA VIDA

Meus senhores e minhas senhoras
meninos e meninas
o circo da vida vai começar.
Podem já aplaudir.
Trapezistas, malabaristas
contorcionistas, equilibristas
e o famoso palhaço
estão prestes a actuar.

Num grito agoniante
o apresentador anuncia:
Atenção! Atenção!
Por favor saiam!
O circo não pode começar
os artistas perderam o coração.

Entra o palhaço hilariante.
senta-se calmamente no palco.
Olha-me e com ar triunfante canta:
Mesmo sem coração
hei-de ser capaz de actuar
hei-de fazer rir e
hei-de fazer chorar!

Fiquei sozinha na bancada
a tremer e a observar.
O palhaço do circo da vida
acetinou a voz
magicou os gestos
e não sei como
pôs-me a rir, pôs-me a chorar.

Ainda hoje estou por saber
se hei-de continuar a rir ou a chorar.

MV

OS MEUS RETRATOS

As minhas paredes
são as casas dos meus retratos.
Sobre as mesas
páginas de vida estão emolduradas.
Param queixumes, desabafos
e recordações em papel imprimido.
Correm histórias nos retratos
que os segredos ainda não deixaram ver.
Escuto muitas vezes as palavras
que eles me querem dizer.
Já sei algumas de cor.
Outras, os meus retratos, deixam-mas inventar.
São velhos, são novos
pintados a preto e branco
ou com as outras cores da vida.
Os mais novos
às vezes parecem seculares
tantas são as histórias
em que me deixo embalar.
Na minha casa
há sonhos espalhados
em retratos transparentes
ou em retratos esquivados dos olhares.
Alguns estão emoldurados
com molduras de ternura
de recordação, de amor
outros são simplesmente retratos
e outros…
ainda não sei que moldura lhes hei-de pôr.

MV

sábado, 19 de julho de 2008

SUFICIENTO-ME?

Boca larga de desvarios
e funda de sorriso
absorve-me.
E metamorfoseio-me
ou recolho-me
ou apareço.
Suficiento-me?
Não!...
E porque não sim?

MV

OS POMBOS

Logo que o dia deixa a noite
e os raios de luz pintam a manhã
é vê-los em bando e em comunhão.
Recosto-me na cadeira
quedo-me
e permito que os olhos
recolham esta valiosa tela.
Pedem licença às asas
e rompem o ar
(ainda sossegado)
em manchas cinzentas
ou em branco de prata.
Seguem em estradas rectas
ou em círculos desenhados
com movimentos de pintores.
Sempre no mesmo espaço
elevam-se com asas em leque
e descem como papagaios de uma só cor.
À tarde, o ritual sucede-se
o deles, pombos, e o meu.
Cá de cima vejo muito
vejo tudo o que imagino querer ver.
De olhos abertos
vejo aquele bando de pombos.

MV

quinta-feira, 17 de julho de 2008

É COMO O CIGARRO QUE ARDE


É como o cigarro que arde.

Põe-se nos lábios

devagar

com suavidade

para não o magoar.

Aspira-se,

segundo a segundo

lentamente

para um prazer sem prazos.

Ou aspira-se com avidez

para um prazer intenso

como se o tempo

para outro sítio fosse mudar.

Vai ardendo entre os dedos

bem preso para não se soltar

e a deixar marcas

que não se gostam de mostrar.

Vai-se esfumando

perdendo-se em ondas

em fios de nuvens.

Chega ao fim!

Apaga-se!

Deita-se fora!

É como o beijo que não se dá.


MV

quarta-feira, 16 de julho de 2008

LUA CHEIA


Vieste lua cheia

e rasgaste a sombra da minha tranquilidade.

Desviaste

o rumo das minhas palavras,

irrompeste

por entre as veredas dos meus desejos calmos,

agitaste

a serenidade das noites aveludadas,

manchaste

o horizonte do sossego dos meus sonhos,

trovejaste

nos meus cantos do silêncio,

exaltaste

a fragrância adormecida dos dias,

e mesmo assim…

eu quero que voltes, lua cheia

para poder sonhar

nos socalcos daquilo que passei a ser.


MV


terça-feira, 15 de julho de 2008

POEMA DO PECADO


desejo

inveja

raiva

sonho

fragilidade

insensatez

querer-te

são as palavras do meu poema do Pecado


MV

segunda-feira, 14 de julho de 2008

DISORTOGRAFIA


Crescem-me sílabas na boca

separadas por cavernas

e incapazes de se juntarem.

Não vale a pena pô-las em jogo

desconheço as regras da ortografia,

só vão formar casos de disortografia

e nem uma palavra

elas vão conseguir formar.


MV

QUERO ESTAR SOZINHA


Liga o leitor
põe A Cavalgada das Valquírias
põe a mesa
não esqueças o vinho
enche-me o prato de ti
deixa-me comer o teu cheiro
o teu paladar
sem o tempo a esperar.
Desliga o leitor
levanta a mesa
depressa
põe o tempo a correr!
Ficou-me na boca
um sabor amargo
Vai-te embora
quero ficar sozinha.

MV


domingo, 13 de julho de 2008

EU QUERO ESTAR NA NOITE


Batia a noite com fúria nas pedras ainda febris do calor do ardente do sol. A cidade fechava-lhe a porta, indiferente ao encanto e às promessas que trazia agarradas aos primeiros fios nocturnos.

Queria proteger-se dos vadios que parecem não o ser, dos olhares das “feras” que atacam pela calada, das crianças apavoradas no silêncio cheio de palavras medonhas, dos sonhos que mitigam a tranquilidade logo à primeira luz da manhã… Assim, a noite não podia entrar.

Que engano!... Na calada do dia, num jogo de escondidas, tudo acontece: ladrões de palavras, de afectos, de lugares, de sentidos; feras adormecidas sem o chicote do amestrador vadio, medo do que se foi ou daquilo que se quer ser, sonhos loucos a atingir o êxtase da quase realidade.

Então que venha a noite. Abram-lhe a porta. Deixem-na entrar. Deixem-na roubar, deixem-na enfurecer, deixem-na atacar, deixem-na sonhar.

Eu quero estar na noite.


MV

sexta-feira, 11 de julho de 2008

ONDE VOGAM OS MEUS DELÍRIOS


Procuro-os, sinto-os, quase os vivo.

Vogam por aqui, por ali

Nos abraços dados à lua

Nas noites escuras em que estou só.

No orvalho transparente

Molhado, sedutor

Caído na folhagem.

Nas lágrimas quentes e loucas

Gritadas bem alto

Ou abafadas no meu silêncio.

Vogam para cá e para lá

Enleados nos braços do pensamento

Atados às minhas mãos

Com algemas de ternura

A caminho do céu cinzento.

Vogam na sombria madrugada

Colorida e desbotada.

Vogam… e vogam…

Nas nuvens voadoras sem asas

Nas estrelas do meu olhar

Na terra viva e quente

Na chuva muda e cantante

Nos passos quietos e andantes.

Onde vogam os meus delírios?


MV