quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

SONS DE ALEGRIA


Tudo o que eu queria
era substituir o som de instrumentos
pelos sons que invento.

O som do amarrotar do papel
onde esvoaçaram cantigas de sabor a mel
Dos passos inexistentes
sonhados em direcção ao céu
Do uivo do vento
por entre os buxos do canteiro
onde semeei sonhos de cheiros
O som do calcar das palavras
que não cederam aos meus pés
Do rebentar silencioso da rosa
que hoje me grita tão alto
Do respirar de uma simples imagem
dissolvida na solidão
Do crepitar das palavras atiradas ao fogo
única luz do miradouro desta imensa escuridão

Se o som de chuviscos de primavera
me tocasse as mãos
nascer-me-ia no peito uma seara de alegria

MV


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

RAÍZES DA MEMÓRIA



Na mais improvável hora
irrompem do solo
raízes que nos atam ao tempo.
Soltam-se inocentes
em gotejos de recordações.
O odor do retrato escondido
na última folha do livro.
As paixões levadas pelas andorinhas
em circuitos migratórios.
A folha colorida e perfumada
onde as mãos escreviam tontas
as palavras nunca enviadas.
Caravelas de sonhos
que ficaram abalroadas.

MV

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

ATRASA...


Espreguiça-se sem demora o cair da tarde
na distância que ainda o separa da lua

Atrasa a luz da memória
anunciada pelo verso nocturno

Atrasa a rede que vai lançar à onda
quase espuma

Atrasa a pétala que exala
a fragrância do silêncio

Atrasa o esconderijo de sonhos
empoleirados em beirais insidiosos

Atrasa em desmesura a ilusão
para não ver um poema
respirar na lonjura da ternura

MV

terça-feira, 24 de novembro de 2009

NÃO SER CAPAZ


Uma rosa ainda por ser
vergada pela brisa
por não ser capaz de crescer

Uma luz apagada
a doer
numa cidade escura
por não ser capaz de acender

Um girassol a agoniar
a chuva a esconder-se
por não ser capaz de o regar

Uma cerejeira vazia
num ermo de cheiro a solidão
por não ser capaz
de pôr cerejas em gestação

Um corpo
um desejo inusitado
a apagar-se
a contrair-se
num gesto desajeitado
por não ser capaz de ser amado

MV

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

PUGILISMO NO CORAÇÃO


De um lado
o vermelho rubro do coração.
Do outro
o cinzento pugilista da razão.

Sob os pés dançarinos
um ringue de palavras em dúvida.
Os músculos retesam-se.
Os punhos avançam.
O combate começa.

Espectadores praguejam.
Incitam.
As apostas estão em jogo.
Que ganhe o coração!
Que ganhe a razão!

E os pugilistas em golpe baixos
ensanguentam a lua
ensombram o sol
rebolam-se no ringue
já riscado de sangue.

Rasga-se um novo olhar…

Espreitam pelas ameias do medo.
E abraçam-se. E fundem-se.
O árbitro anula o combate.
Não vence o coração! Não vence a razão!

Estranhos são os humanos
que erguem ringues de pugilismo
dentro do coração.

MV

sábado, 24 de outubro de 2009

VERDE

foto MV

Sempre as palavras a viverem dentro da cerca
quase secas, quase esquecidas

Pedem aos dedos que as exortem
a desbravarem-se em colinas de afecto

Aspiram libertar odores da lua
inflamar o ar em que se propagam
desvendar o mistério dos passos com que dançam

Mas o seu perfume fica sempre inatingível

Se as palavras não soletrassem na gaguez
se fossem capazes de tocar a tua alma
o verde em mim funcionaria

MV


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

PARADOXOS

Foto do blogue SOANTES
http://soantes.blogspot.com


Por detrás das cortinas
olhar dissimulado
ao passar das horas mudas.
Agitadas.
Longas.

Estendendo o tempo
quase ao limite da ruptura.

Horas de há muitos dias
inscritas nas paredes
sufocadas de ilusão.
Inscritas nos mosaicos amassados
pelo acotovelar do riso da vespa
e da lágrima da borboleta.
Inscritas no tecto
a coalhar instantes
de tudo e de nada
de luar e de escuro.

MV

sábado, 3 de outubro de 2009

INTERPRETAÇÃO


Sempre o amor se escreveu em textos.

Com verbos presentes, futuros ou passados
palavras que acordam a rir em cada instante
ou adormecidas com os olhos cansados.

Com advérbios de lugar e de tempo
onde o amor espreita por frestas embriagadas
ou à noite se deita em lençóis de lamento.

Com substantivos concretos e abstractos
em palavras de nítida caligrafia
ou em palavras que falam a língua dos astros.

Com adjectivos perto ou longe do coração
para qualificarem as inúmeras palavras
que enchem o côncavo da mão.

E assim o amor se compõe em textos
tão gramaticalmente correctos.

E revista a pontuação
acontece uma e outra leitura
a que não conseguimos dar interpretação.

MV

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

QUATRO VERBOS PARA UM DIA

Levanta-se esporeada
com o cheiro ácido dos lençóis

Navega no silêncio duro
em águas de suor

Rema vadia
com remos apodrecidos pelo sal

E de asas quebradas
espreme da memória
o cheiro doce
antes aceso nos lençóis

MV

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

TOADA


Abrir a gaiola em que me prendo
e soltar as toadas que no silêncio toco

Num sopro fazê-las chegar
e acordar em ti a música
que não me abstenho de ouvir

Serão flautas violinos violoncelos
um bombo estridente que acorde a noite
e te leve o canto desafinado
que tenho escondido no foles do dia

MV


sexta-feira, 11 de setembro de 2009

COR DA RESIGNAÇÃO


Veste-te de rosas
se a fera te açoitar

Veste-te de cravos se
a sanguessuga te sorver a alegria

Veste-te de lírios
se a lama te abafar a pele

Veste-te de malvas
se o lacre te colar os dedos

Ou veste-te de luto
no dia em que te rendas
resignada
à ferida a alastrar no peito
à enfermidade da alegria
ao adensar da lama

Veste-te de preto-luto
no dia em que não consigas violar o lacre
assente entre os dedos das mãos.

MV

(dedico este registo ao Jota - blogue POEMAR- TE)

domingo, 30 de agosto de 2009

ACORDAR



Morder os sentimentos até ao osso
para que as palavras comecem a falar
-seja a gemer, seja a gritar.

Que a planície acorde da lassidão
e acordem as mãos que retraio no peito
Que sopre uma brisa musical
e me devolva as cordas do violino
Que as pupilas cresçam nómadas
e descubram novos fulgores para os sentires
na íris, há tanto tempo acomodados
Que o luar me volte a lamber os dedos
e faça estremecer as imagens apagadas no peito.

MV


quinta-feira, 20 de agosto de 2009

VAZIO

foto MV




Madruga a pomba
com os versos adormecidos no arrulhar.
Absorve a atmosfera vazia.

Morre, por instantes, o poeta
quando escreve toda a emoção na poesia?

MV


quinta-feira, 6 de agosto de 2009

SEM TÍTULO (II)


foto MV



Como os dedos pousam leves
nas teclas do piano
a andorinha de asa azul
pousou sobre a pérgola da tarde.

Sonatas vão-se desfolhando…
trespassando a espessura dos sentimentos.

Deixo-me “prostituir”
submissa ao chamamento de Tristesse
enquanto afrouxam os pregos de aço do dia.

O silêncio torna-se livre.
Abro a mão e solta-se a borboleta.

MV


sábado, 25 de julho de 2009

RASGÃO


foto MV



Nos arrabaldes das mãos
um caminho de silêncios.
Loendros inertes.
Tílias sossegadas.
Apenas o sopro do candeeiro teima escrever
uma mendicidade de palavras.
Amarelas.

Já a noite vai alta.
Já não me pode pertencer. Nem eu a ela.
Fecho com um pé a porta.
Devagar.
Com o outro esmago
o que as fendas dos lábios queriam dizer.
Uma prosa sem sentido.
Talvez há muito rasgada.

MV

domingo, 19 de julho de 2009

ARMADILHA



Quadrado de terra ácida
adocicada pelo esplendor do trigo.

Arestas soltas dos vértices
presas por colheres de mel

Ângulos rectos a deformarem
pelo desvio do esquadro à régua

Poliedro de imprecisa essência
esboço de um projecto armadilhado

MV

sexta-feira, 10 de julho de 2009

MULHER



foto "pauta lírica" do autor do blogue Soantes
http://soantes.blogspot.com





Mulher essência de terra
busca permanente de água.

Cinzel feito de amor
e nos dedos o cheiro a hortelã.

Nos olhos uma “pauta lírica”
solta andorinhas
em passeios de diferentes línguas.

As línguas da rocha, do vento ou do riacho.

Mulher trigo, uva, fio de azeite
saia e manguitos de chita
a esculpir na terra estátuas de água e vento.

MV


quinta-feira, 2 de julho de 2009

ASSIM SEJA

foto MV

Assim seja
reconhecer-te
no respirar doce do rio.

Cheiro a alfazema
que me perfume o peito
Sumo de uva
a aveludar-me a garganta.

Assim seja
zumbido de insecto
a rasgar silêncios
Raio de sol a brilhar
quando o último candeeiro
se apagar.

Assim seja isto e muito mais
sejas tu, amor
o cristal
a flor
o sopro de ternura
a reflorestar a alegria
de cada amanhecer.

MV

segunda-feira, 29 de junho de 2009

PRÉMIO LEMNISCATA



AGRADEÇO ESTE PRÉMIO AOS AMIGOS JOTA (POEMAR-TE), ISABEL (ARTISTA MALDITO) E "PRINCESA" ( O NOSSO CASTELO)


TRANSCREVO O TEXTO QUE SE ENCONTRA PUBLICADO NO BLOG "ARTISTA MALDITO" SOBRE O SIGNIFICADO DESTE PRÉMIO:


“O selo deste prémio foi criado a pensar nos blogs que demonstram talento, seja nas artes, nas letras, nas ciências, na poesia ou em qualquer outra área e que, com isso, enriquecem a blogosfera e a vida dos seus leitores."

Sobre o significado de LEMNISCATA: “curva geométrica com forma semelhante à de um 8; lugar geométrico dos pontos tais que o produto das distâncias a dois pontos fixos é constante.” Lemniscato: ornado de fitas; Do grego Lemniskos, do latim, Lemniscu: fita que pendia das coroas de louro destinadas aos vencedores (In Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora).

MV



segunda-feira, 22 de junho de 2009

POEMA CAÍDO

Uma a uma as palavras foram caindo
da escada que sustinha a vida do poema

Um poema a respirar a madrugada das amoras
embriagado no roçar macio das uvas

Um poema que crescia enchendo a casa
ilustrando nas paredes a ternura dos dias

Um poema que chorava sozinho
quando todos sorriam

Agora sou sou eu que choro
sobre as lágrimas do poema caído

MV

terça-feira, 16 de junho de 2009

O MEU POEMA

















(foto MV)

O meu poema é a cal que a chuva arranca ao muro
ou o muro lavado pela chuva.
É a erva daninha crescida no meio do trigo
ou o trigo nascido no meio do joio.
É a fera de cornos em afiados
ou o touro bocejando lírios.
É a maçã podre a arrepiar-me
ou a cor dessa maçã a seduzir-me.
O meu poema sou eu Hoje
Ontem
Amanhã.
É intemporal.
O meu poema é sempre vento ou brisa no peito
na velocidade com que as mãos lhe colhem as palavras.

MV

domingo, 7 de junho de 2009

VÍRGULA E RETICÊNCIAS



Rápido este pulsar que tenho no peito
como o bater tonto das asas das borboletas.
É festa em gestação de palavras envergonhadas.
Na hora em que me expulso do sonho
a vírgula aparece e reduz o compasso da pulsação.
A borboleta abranda. Descansa.
Pousa nas reticências do vento suão.
Entre o tempo da vírgula e das reticências
continua o pulsar do coração.


MV

quarta-feira, 3 de junho de 2009

O QUE NÃO SEI DIZER


















Se alguém um dia me perguntar
onde nasce a fonte de inspiração
só poderei responder que sai
da raiz profunda do olhar
de leitos secos pelo estio das mãos
da água que lava e suja os dias
de rios encalhados em muro de betão
da obstinação de segredos acautelados
da seiva rebentada em mãos de desejo
dos subúrbios esfarelados da memória.

Ou tão somente poderei responder
que brota daquilo que não sei dizer.

MV

quinta-feira, 28 de maio de 2009

ROMANCE






É no fundir do dia com a noite
que o romance acontece.
As pálpebras humilham-se ao sono
enquanto a luz murcha, preguiçosa.
A poeira quente da tarde recolhe-se
e a planície adormece rendida ao tacto da brisa.
As flores acomodam as fragrâncias nas pétalas sonolentas
e as palavras adormecem ronronando ao colo.
O poente liberta-se em sensualidade
e toca-me a pele, os olhos, os dedos.
Cresce a seiva dos sentidos.
Espraia-se o romance
enquanto o poema se desenrola
no silêncio da língua.

MV


sexta-feira, 22 de maio de 2009

GEOMORFOLOGIA


foto de Ana - blogue Espelho Mágico


Na planície da vida
deitando sonhos devagar
colhe grãos de silêncio
- raiz da inspiração –
e serena enrodilhada
na voz do melro a cantar.

Alpinista vagabunda de emoções
escala montanhas p’ra trepar ao céu
- trepadeira que foge ao chão -
nos dedos asfixiados leva a pressa
de fugir às histórias ungidas de solidão.

No vale desliza o verde esperança
e no regato que lhe corre na cara
deixa fluir as maçãs podres
que lhe arranham a garganta.

Nas margens dos rios repousa as mãos
cansadas de viajar sonhos
aguilhoados na inércia das jangadas.
Na foz desagua pruridos
que a gaivota desprende das asas.

Nesta geomorfologia de vida
- feita de terra e de mar -
escala o sim e escala o não
fabrica braçadas do dia
enleadas em tanta contradição!

MV

sexta-feira, 15 de maio de 2009

SOMBRAS DO PASSADO




Perseguem-me as sombras vigiadas
pelos grãos de terra
onde antes submergia as mãos.

E agora...
apetecem -me os dedos tontos
na procura de um único bicho de contas.


MV

terça-feira, 12 de maio de 2009

SELO


Agradeço à Isabelita do blogue OUTROS SORRISOS este "olhar irresistível"



As regras exigidas por este selo são:
1. Colocá-lo no seu blog
2. Indicar 10 blogues que adore
3. Informar aos blogues indicados que receberam o selo
4. Dizer 5 coisas que adorem na vossa vida e porquê


Deixo aqui as 5 coisas banais que primeiro me vieram à cabeça e que adoro:

1. ler e escrever nas esplanadas
2. beber calmamente o meu café da manhã no meu terraço
3. comer cozido à portuguesa
4. cigarros Black Devil com sabor a chocolate
5. queimar incenso

MV



sábado, 9 de maio de 2009

UTOPIA

imagem cedida por Isabel Monteverde



Revolvo na terra cinzas caladas

digiro e rumino ecos passados

que um dia correram nas insónias do vento.

Sentada em burocracias que me encurralam

pressinto que a linha do tempo

então feita de relva e grama

vai ser marcada a ferro e fogo

na fragilidade de um momento.

E recuando na memória de rosas em botão

ergo esse momento na luz da utopia

amordaço as leis da lógica e agarro o horizonte

sabendo que é migalha de ilusão

saída da cratera de mais um dia.


MV

domingo, 3 de maio de 2009

AGENDA DE EMOÇÕES



Brindam-nos os dias
com colecções de emoções.
Inesperadas. Imprevistas.

Solta-se o canto do grilo
em intensa sessão de terapia.
Deixa o caracol um rasto de cristal
-estendal de palavras em alegria.
Flauteia cristalino o pardal
-convite para um baile de folia.

Pressente-se o vento a fustigar
o cheiro a alfazema da tarde.
Sem autorização soltam-se murmúrios
há muito residentes no olhar.

E as emoções fundem-se em bulício triste.

A sombra rendilhada das árvores
cinzela-se de nostalgia.
As nervuras das folhas
riscam a quietude da tarde.
Repuxos em erupção
soltam vozes plangentes do coração.

Permaneço sentada no jardim
recatada em solene solidão
e com os dedos a tremer
escrevo na agenda do dia:

não vale a pena agendar a emoção
ela é incompatível com o calendário do coração.

MV

sexta-feira, 1 de maio de 2009

RESISTIR


Não me obedecem as mãos à voz do coração, hoje 1.º de Maio. Deixo uma outra voz “RESISTIR”, pelas mãos de Joaquim Pessoa.

Dobrar na boca o frio da espora
Calcar o passo sobre o lume
Abrir o pão a golpes de machado
Soltar pelo flanco os cavalos do espanto
Fazer do corpo um barco e navegar pedra
Regressar devagar ao corpo morno
Beber um outro vinho pisado por um astro

Possuir o fogo ruivo sob a própria casa
numa chama de flechas ao redor

125 POEMAS – Antologia Poética

MV

segunda-feira, 27 de abril de 2009

INVENTA-SE



Com o olhar no abalar das andorinhas
tacteiam-se lamentos na pele.

Em cada ruga sulcada pela idade
inventam-se nascentes de palavras
a correr no viço da lisura desejada.

Na cintura já talhada fora das medidas
inventam-se colares de missangas coloridas.

No olhar perturbado por sonhos inacabados
improvisam-se estrelas que dançam deslumbradas.

No útero morto à vida
inventa-se um cálice de vitalidade.

Dos seios descaídos pelas mãos do tempo
inventa-se o viço de rosas em botão.

Das nádegas, de firmeza já corroída
inventa-se o fulgor de montanhas plantadas.

Na pele enrijecida pela vida
inventam-se poros de paixão incontida.

Hoje, sentindo o viço a exilar
as mãos escrevem saudades
num novo dicionário do olhar.


MV