sexta-feira, 17 de junho de 2011

SEM RETORNO


Um dia confiei no destino
e atirei ao rio trunfos
que andava a deixar escapar.

O rio é um curso de água livre
(assim me ensinaram na primária)
mas esqueci-me que
quase todos os rios
se vão deslaçar no mar.

E esqueci-me também que o mar
sendo tão cheio de peixes e de água
se torna voraz e muito sedento.

Assim, numa das suas ânsias
engoliu todos os trunfos que lá foram parar
e hoje
só hoje reparei
que nenhum deles ao rio pode voltar.

MV

domingo, 29 de maio de 2011

FAREI APENAS TUDO ISTO


Hoje levantei-me e fiz a cama.
Uma perfeição. Sacudi e estiquei os lençóis.
Até sacudi os tapetes e alinhei-os simetricamente.
Abri as gavetas e organizei roupas.
Não lhes deixei uma única prega.
Bem empilhadinhas. Nada fora do lugar.
Também pus a mesa com esmeradíssimo cuidado.
Toalha limpa a condizer com os pratos. Como eu gosto.
Hoje fiz tanto. Hoje não fiz nada.

Amanhã hei-de voltar a fazer a cama.
Hei-de sacudir os lençóis e
deixar sair tudo o que incomoda o coração.
Os tapetes, esses, vou sacudi-los
tirar-lhes as poeiras que ficaram dos sonhos.
E depois hei-de alinhar tudo o que sobrar.
Quanto às gavetas
hei-de misturar as peças de mangas compridas,
com as de mangas curtas e com as de cavas.
Hei-de fazer pilhas tão  desorganizadas
que arrepiarão os olhos de quem as possa ver.
Hei-de pôr a mesa, sim. Com uma toalha qualquer.
E em vez de lhe por pratos
hei-de pintá-la de lírios, de rosas e de papoilas
e saborear os cheiros que me crescerem nos olhos.
Amanhã não farei nada. Farei apenas tudo isto.

MV

sexta-feira, 6 de maio de 2011

TACTEAR-TE


Quis tactear-te
no princípio e no fim
do que não se via.
No imenso nublado da noite
encontrei olhos cegos
mãos paradas e mudas
vozes taciturnas
na recta das palavras.
Quis tactear-te
dentro da terra verde
e impenetrável
fora do espaço azul
onde não havia porta.
Quis tactear-te
por todo o lado
e não te encontrei.

MV

sexta-feira, 8 de abril de 2011

OMBRO VAZIO


"MULHER" de Maria Dulce Ferreira
(Obrigada Dulce pela ternura do gesto.)



O ombro em que lhe pousou a lua
está vazio.
Só uma sombra infinita o povoa
involuntariamente caída
das insónias sucessivas das rosas.
Um ombro que
por sistema
convoca o silêncio
o frio
e que mudo
arranca memórias
do desencontro de estrelas.
Poeiras no tempo
no centro do desconforto
de um ombro vazio
de calor e luz.

MV



segunda-feira, 28 de março de 2011

CÍRCULOS DA NOITE


Quatro invernos de estátuas passados
enquanto as mãos rasgaram caminhos
talvez a cumprirem penitência.

No mistério das sombras
ela solta a língua:
lua lírio brisa
veleiro sonho.
Diz qualquer coisa.

O eco solta-se contra o tempo
morde-a e ri
ri até que as gargalhadas assustem os pássaros
e a levem enjeitada nas asas.

A lua nasce desassossegada
entoa brilhos desconcertantes
e o perigo rompe nas noites.

Deixa-se seduzir
nos círculos que a noite desenha.

A poesia exacerba-lhe os desejos das mãos
e depois corrompe-lhe a dureza da razão.

MV

quarta-feira, 16 de março de 2011

O MEDO NÃO DEIXA VIVER


Deixa sair das nuvens uma água
que te molhe a pele
e te abra os poros
para que deles saiam remorsos
do que ainda nem sequer fizeste.

Deixa passar a água do mar
sobretudo se ela vier em ondas
para te levar as incertezas
do que pode ou não acontecer amanhã.

Deixa atear o lume
e permite-lhe que queime o lacre do preconceito
que te fecha o coração.
O coração quer-se solto que nem ave de campo.

Deixa escancarar as portas da mansão
onde  te habituaste a cristalizar  receios
que te atacam, tal garras de fera.

Deixa rebolar nos seios
o desejo do beijo, da carícia, da língua.
Fecha os olhos se não queres ver,
mas deixa.

Deixa que o óbvio se torne não óbvio,
se isto ou aquilo ainda não aconteceu.

Deixa que tudo isto aconteça
e deixa que aconteça muito mais.

Deixa-te levar no voo do pardal,
mesmo que te canses
mesmo que adormeças.
O pardal voa sem medo
mesmo que tenha de suspender o  voo
ao aviso do espanta-pardais.
Acredita, será fugaz esse momento.

É que o medo não deixa viver.

MV

terça-feira, 8 de março de 2011

MULHER

Às vezes
a lua hipnotizada pela pulsação do mar
derrama tranquilidade sobre o chão.
Os corações ataviam-se de ternura
cruzam voos com precisão.
A boca engole a tristeza
em rolos imensos de saliva.
Os olhos então afagam a vida.

Às vezes
o ventre do pensamento pare ideias grotescas,
ignóbeis
turvas
iradas
desalentadas.
Atravessam a crosta do coração
revolvem o sangue
bombeiam atitudes irascíveis
como a ferocidade das ondas.
Os olhos então mordem a vida.

Sou sempre a mesma
e por isso proclamo:
sou fraca e sou forte
sou água e sou terra
assim o vento me empurre
para campos de tileiras
ou para machados de guerra.

MV

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

EMPRÉSTIMO


Escapou-se-me o lápis dos dedos
em escorregadela mansinha
Deslizou para a frente e para trás
deixando um labirinto de pontinhos
Azuis
Verdes
Castanhos
De cores que eu não conhecia
Os olhos abriram-se muito fundo
para além do que viam
Os pontinhos piscaram
dançaram para cima e para baixo
para ali e para aqui
Ao cair da lua
ajeitaram-se certinhos
e num canto do papel escreveram
que quando a manhã se levanta
há sempre um pássaro
que empresta ao dia
um canto de alegria

MV

sábado, 19 de fevereiro de 2011

EM VÃO



A mão na testa a escorregar
a pender para o vazio do dia.
Os músculos fatigados
de tantas horas presos a quase nada.
O peito cansado dos Slims fumados
pés macerados de vagabundear
sobre acontecimentos ansiados.
Não valeu a pena acordar enrodilhada
em tão grande saudade
acocorar-me como louca
assim perdida no tempo.
Os olhos fecham-se
recusam-se a fazer Login
nos últimos instantes do dia.
Foi em vão o esforço programado
Foram retalhos tesourados
e a muito custo alinhavados.

MV

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

LUA DE MARFIM EDITORA

"A Lua de Marfim é uma editora jovem, fundada em Fevereiro de 2011, cujo objectivo principal é promover a leitura, juntando as componentes lúdicas e orientadoras do livro.
Somos uma editora generalista que também aposta em novos autores portugueses e de grandes ideias.
Queremos preparar o futuro com sustentabilidade, sem esquecer o passado e vivendo o presente com intensidade, inovação e dinamismo em busca de uma qualidade editorial crescente.  
Acreditamos no objectivo de satisfação das necessidades dos Leitores e dos Autores em Portugal e do Mundo, porque, para nós, não existem fronteiras. Existimos para criar!"


Eu acredio na Lua de Marfim e desejo ao editor grande sucesso.
http://luademarfimeditora.blogspot.com/

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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

LÁGRIMAS


Lágrimas esfregam e lavam a dor
ou deixam húmida a saudade.
Matam a secura da boca.
Ou ilusão
se lhe deixam o gosto áspero a sal.
São companhia de gotas de orvalho
sobre folhas resgatada da vida.

Lágrimas são água que num instante
se branqueia em sorrisos,
se azula em abraços,
se acinzenta em palavras,
se opaca em silêncios,
se acastanha em tristezas.

Emigram dos olhos. Imigram no coração.
Viajam noite e dia em rotas migratórias
deixando o rasto da tinta
com que escrevem os cheiros da vida.

Lágrimas são a linguagem do coração.

MV

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

SOBRE A MESA


Lápis de cristal
vagaroso
a colher palavras.
Borracha de seda
em recusa do risco apagar.
O rascunho do poema
sobre a mesa
ousa começar.

Marcas desamparadas
aconchegam-se na raiz do papel.

Sopram ventos que se cruzam
sem dependência das mãos.
As palavras rugem a fracturar-se
e o rascunho do poema
sobre a mesa
fica por acabar.

MV

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

PALAVRAS À CHUVA


Por entre a chuva passam palavras
que ficam transparentes
e que espelham tudo o que me envolve.
Ou ficam negras e toscas
ofuscando o que sinto.
Quero pintá-las de branco
da cor da lua e da cal
mas o branco da paleta sumiu.
Pinto-as, então de lágrimas
e, aí, perdem a forma e o cheiro
esquecem-se do sonho
e tornam-se invisíveis
aos olhos pintados de nada
à espera do branco da paleta
da cor da lua e da cal.

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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

PENSAMENTO IMPLACÁVEL

Dissequemos as ideias que percorrem o pensamento.
Esqueçamo-nos de recordações
que os pardais teimam em cantar no telhado.

Imprevisibilidade!
Escassos são os instrumentos de precisão
e a mão treme na hora da incisão.

Implacável é o pensamento.

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domingo, 2 de janeiro de 2011

INDECISÃO


Assim viver
entre sol e sombra
é como acordar
e ver com olhos nublados
o voo dos pássaros.

Assim viver
é humilhar o acordar de cada dia.
É ter uma mão a refrescar-se no rio
e a outra a queimar-se em brasas de carvão.

É acto de cobardia
suspender assim as mãos do destino
sabendo que ele pode ser quartzo,
pássaro,
onda calma,
estrela de olhos a sorrir
ou
pedra fria,
víbora,
charco de lama.

Decide, que as indecisões perfuram o peito.

Escolhe a sombra
e vive em escombros deixados pela saudade.
Ou escolhe o sol
e sonha enquanto um  único raio brilhar.

Ou não escolhas
e vegeta.

MV