terça-feira, 7 de dezembro de 2010

INCÓGNITA


Tempo
veloz
lento

De sabor a sal
a mel

De permeio
o prenúncio

a brisa
o tufão

Hoje
não sei

MV

sábado, 27 de novembro de 2010

VOCAÇÃO


Procuro a razão
de tão vincada vocação.

Escolho sempre vidros opacos
ou a margem do rio
onde não há multidão.

Modelo mil razões
e nenhuma me responde.
Uma encomenda recolhida à nascença
ou hábitos pespontados no tempo?

Das mil razões
que faço e desfaço
há-de haver uma
que me faz ser
coração tão isolado.

MV

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

MESMO ASSIM


Um verso de água
brotava da neblina inflamada.
Sôfrego
bebia o azul do mar
até lhe sobrar apenas o incolor.

Os olhos sabiam do abismo do mar
e sabiam do delírio do verso
que voava rente  à fluidez da espuma.
Sabiam ainda que o azul não ressuscitava.

Mesmo assim
entre línguas de areia
o verso surpreendeu os lábios
num beijo de cristal.

E o verso naufragou.

MV

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

DE REPENTE


Outra vez sentada no jardim
de cotovelos apoiados
no parapeito do meu silêncio.

Sinto as raízes da inquietude a habitarem-me.
A espremerem-me em dentadas.

No lago, sob os velhos chorões
o cisne coça-se debaixo da asas.
Sacode as penas, sacode o ar.

Fragrâncias alastram em liberdade.

E de repente…

afasta-se a inquietude que me povoa
segue a excitação dos pássaros
afinca-se nas copas das árvores
e, cheia de sono, adormece
enquanto o café que bebo,
me fala baixinho de pétalas de ti.

MV


sexta-feira, 5 de novembro de 2010

FALSIDADE



Caíram pérolas das tuas gargalhadas.

Não sei porque é que às noites,
não sucedem sempre os dias. Fica tão escuro!
E eu enrolada em breu.

Não sei porque é que a lua se encolhe tanto
e não deixa passar os pontos cardeais.
E eu tão perdida!

Não sei porque é que o céu se abre em chuva
e piso torrões tão duros.
E eu com gretas cá dentro!

Não sei porque é que a terra engravida de tanto húmus
e os cardos não medram.
Tenho o  pensamento paraplégico!

Mais uma pérola caiu da tua gargalhada.
Gentil, terna, mansa?
Não. 
Pérfida, 
madrasta,
dissimulada!

 Mas claro que tens razão.
Não sei nada. Ou sei?
Sei que caíram pérolas falsas das tuas gargalhadas.

MV

domingo, 24 de outubro de 2010

SEM TÍTULO (V)


No lugar onde o vento pára
acalmam os olhos rasos de tempestade.
Imobilizam-se os poros da terra
repousa o cardo,
a urze, a esteva.
O dorso do rio prende a canção nocturna
enquanto a lua suspende a respiração.
Nas estrelas o estremecimento pára
e as aves recolhem o voar.
Do céu um silêncio parido
abençoa a terra sem o mais leve movimento.
Ela é a única que se eleva
para não se afogar na virgindade do silêncio.


MV

sábado, 16 de outubro de 2010

ISABEL MONTEVERDE


Fecho os reposteiros, para recordar.
A luz chega-me do interior,
Doce, dourada, sobre as vinhas ,
(poeira a repousar sobre as vírgulas)
Cobrindo-lhes as formas e o fulgor.


Tão frágil, como a vida dos pirilampos,
(ou nos cantos da casa as lembranças)
É, deste sonho, o despertar para a dor.
Não te quero aprisionar.
Quero ver-te voar.
Quero ver-me transcender,
As letras soltas, ao entardecer
MV

Uma última e singela homenagem à artista plástica, amiga e grande mulher ISABEL MONTEVERDE, com a publicação de um dos seus poemas  e de um dos seus trabalhos plásticos.
Obrigada Isabelita, por tudo o que comigo partilhaste.

sábado, 9 de outubro de 2010

ÀS VEZES


Às vezes basta-me a lua
a descansar no dorso do rio
ou o poente a imobilizar a planície.
Um riacho vagabundo
a adormecer um dossel  de ervas
ou o rebentamento de uma aragem morna
a escorregar do azul inocente do céu.

Às vezes basta-me o dia a abrir-se
com lassidão 
ao tenro botão de rosa.

Que imensa e pura beleza!

Apetece-me aplainar
as irregularidades que trago na alma,
ocultar todos os receios nas pálpebras.

E logo nos olhos me bailam danças
em que as asas feridas
se soturam com fios de alegria.

MV

domingo, 3 de outubro de 2010

VENTO



 Maestro de orquestra do ar
de batuta em direcções livres.
Algazarra de línguas desentendidas
entre as malhas frágeis do silêncio.
Açoita e algema nuvens
que choram gotas desiludidas,
desalinha a serenidade do ar,
grita canções asfixiadas,
desfaz carreiros de formigas
em furiosas golpadas.
Ateia o lume da fogueira
entre palavras quase abrasadas.

Vento! Símbolo arruaceiro do coração,
voz da poesia onírica escrita pelas mãos.

MV

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

VÍCIO


Há noites assim.
Baixam, semeando o canto do rouxinol.
Abeiram-se debochadas
listadas de cheiros apontados ao peito.
Hortelã
Canela
Tília
Cheiros inflamados
a trincar o orgulho
que cai por terra em pedaços.
Esvai-se..e é o ópio da loucura.
Endoidece-se
valsando sonhos em noites de miragem.
Saudades vagueiam… é vício intrincado.

MV

sábado, 4 de setembro de 2010

LEVITAÇÃO



Toquei na vidraça invisível da lua.
Enlaçada no seu brilho de prata,
entrei.
Senti o vigor de mãos a falarem,
tactearam-me olhos  de luz,
acorrentaram-me braços
num abraço de alienação.

Ao infinito, muito infinito
fui chegando sem rota
sem direcção
sem hoje, sem ontem
e sem amanhã.

Acostei a cabeça aos olhos da lua
e adormeci em lençóis de vento.
Caminhei por caminhos desviados da razão
enquanto me esquecia que daí a pouco
podia já não ser nada.

MV

sexta-feira, 16 de julho de 2010

SEM TÍTULO (IV)



 Dedos! Feridas!
Que combinação tão imperfeita
desenhaste com os teus fios de luar!
Para onde levaste tu, ó lua,
a alegria que em cada acordar me sussurrava   -  Bom dia?
Fugiu-me do peito?
Talvez descanse no branco da magnólia.
Ou no restolho da seara cortada.
Debicada pela ave que me entontecia?
Ou talvez escrita apenas
na língua dessa boca tão vazia!

MV

sexta-feira, 18 de junho de 2010

SONHOS POR ARRUMAR



Acorda calma a manhã.
Preguiçosa. A bocejar.
Parece que a força da Natureza
desafia à serenidade
com vontade de tudo arrumar.

O vento preso na brisa amena
adormece as nuvens em suave deslizar.
O sol indolente no raiar
aquieta o brilho provocante do roseiral.
A gata  enrosca-se no seu abrigo
sem vontade de me afagar.

E é então que me apetece arrumar-me.

Sereno as mãos em gestos de seda,
indolentes no versejar.
Arrumo o olhar no casulo da mariposa,
preguiçoso em se soltar.

Parece estar tudo aprumado no seu lugar.
Só restam sonhos e mais sonhos,
alguns muito difíceis de arrumar.

MV

terça-feira, 8 de junho de 2010

SEM NOME



 Não sei o nome desta chuva
densa e negra
que me dói no peito.

E lá fora apenas pinga.

Vergasta o vidrado do peito,
quebra o verniz do olhar,
esgaravata na essência da alma,
sulca feridas desnecessárias.

E lá fora pinga. Apenas pinga.


MV

terça-feira, 25 de maio de 2010

VISÃO À LUZ DA MADRUGADA



A noite engole vozes cansadas.
Só permanece o trote da mulher
que voa as crinas desenhadas em aço.
Atravessa lodo breu e suja os lábios
inclinados em conspiração de silêncio.
Vira-se o vento nas veias,
enquanto conjuga outros verbos no poema.
De suor projectado em doces orvalhos
multiplica apelos suculentos a frutos
que espreitam em postigos iluminados.
Encolhendo o corpo entre minutos de lama
a mulher segue a trote e cresce
para a boca de uma nova madrugada.

MV

sexta-feira, 14 de maio de 2010

OPACIDADE



A tarde colhe sonhos
e o ribeiro desce fulminante.
Leva nas águas oculta a vaidade
e corre tão à pressa,
tão cego,
que não repara no poejo sedento
na margem do poema a secar.

Diz-me ribeiro
se tudo isto é apenas vaidade
ou se sob cada pedra que roças
escondes um poente aceso de verdade.

MV

sexta-feira, 7 de maio de 2010

LARANJA BRAVA DE MAIO



Limpa-me laranja brava de Maio
desta acne que me veste de inquietação.
Afia-te foice romba
que mascas a grama nascida nas mãos.
Enfurece-te vento
roça a terra, o rio, roça-me a pele,
tomba no leito fumo de incenso
e purifica os sonhos sem chão.

Que a uva não se tansforme
na embriaguez do vinho
Depressa os bagos se soltem
e sejam consumidos longe do meu caminho.

Se existe Deus
que Ele me ajude a jejuar
não de leite, pão ou carne
mas de palavras pressentidas em cada acordar.

MV

terça-feira, 27 de abril de 2010

ENVELHECER


Se não estivessem tão flácidos
estes dedos do tempo,
ainda seguravam a Primavera
das acácias em flor.
Agora arrastam-se, quase
folhas de nervura seca,vindas
passo a passo, de tão longe.
Oiço-te ainda rio. Oiço
no teu canto orvalhado
esse desejo de mitigar a sede
entre a  ternura da folha seca
e o  vermelho das rosas,
 respirado.
É o tempo da cor intermédia
entre o preto do verso completo
e a audácia de uma estrofe a voar.
Chega Abril, de muito longe,
cada vez mais rente ao chão.
Já ofega sobre as ervas, este tempo
de mãos descaídas. Rastejadas.
É o vilão do verde das colinas
lâmina que penetra
neste  tempo de rosas desmaiadas.


MV

sábado, 27 de março de 2010

FANTASIA



Quando o vento cruza os ramos da hortelã
esboroam-se pérolas que as aves dançam nas asas
Repousam palavras na sombra das horas
à espera  que uma quimera acene
O sonho cresce
a fantasia dança na tarde encantada
As aves baixam
trazem nas asas palavras já lavradas
Uma brisa balança-se nos recantos da tarde
e a hortelã descruza os ramos
numa dança indomada que ninguém vê.
E nesta fantasia, talvez vã
sou vento, ave, sonho
sou ramo de hortelã


MV

sábado, 13 de março de 2010

AGITAÇÃO



As palavras do meu poema
têm a cor da saudade.
Talvez a saudade absurda de sonhos
medrados  na inocência dos cravos.
As rimas do meu poema
têm o odor da saudade.
Talvez a saudade proibida
de sonhar em contra-mão.
As metáforas do meu poema
têm o paladar da saudade.
Talvez a saudade envergonhada
do hálito quente deixado pela voz das cigarras.
E assim me agito neste ninho de saudades
sem descanso para as minhas asas remendadas.

MV

sábado, 27 de fevereiro de 2010

ESPERANÇA


O bairro já adormeceu
A lua vela-lhe o sono

O peito acorda
em roseiras podadas

O vento em fúria engaiolado
Repouso dos sentidos fatigados

Um rasgo em sombras densas
A pele velha dos dias esfoliada
regenerada com loção florida

Com vagar
regatos de luar
correm em surdina
prenunciam outro dia
debulham palavras e sentidos
e inscrevem
neste velar clandestino
que numa queda
nem sempre se partem
as cordas do violino.

MV

sábado, 30 de janeiro de 2010

SEM TÍTULO (III)




Esqueci-me de vos sorrir
só porque algumas nuvens cinzentas me sobrevoavam
Esqueci-me de brincar com as palavras
Na minha boca Na vossa boca
Esqueci-me que a voz do vento
à noite me trazia recados vossos
Esqueci-me de vos tocar nos dedos em ternura
Esqueci-me de vos tocar no rosto em afago
Esperava fazê-lo amanhã
E não tive tempo de o fazer
Em vez de brincar de vos sorrir
escutar e de vos tocar
choro agora
e cubro-vos os rostos de pedaços de histórias
que ficaram por acabar
Porque partiram agora
e não esperaram pelo meu amanhã?
Por tudo isto
trago à rojo no peito as lágrimas
enroladas num poema
feito de dores mergulhadas em mares de fraqueza

MV