quinta-feira, 28 de agosto de 2008

SILÊNCIO


O rosto do silêncio
entrou de rompante
rasgando a serenidade
o caminho da doçura
a luz frouxa do dia
a tranquilidade da noite.
Só ficou a lua
no seu imenso silêncio
a inebriar-me neste tempo
que foi ontem e que é hoje.
Fugiram as palavras
por veredas invisíveis,
caminhos sem forma,
sem vida,
sem destino.
Ficou o vazio do tudo
e permaneceu o escuro sem cor.
As palavras que eu queria
habitam numa casa
sem morada e sem tempo
chamada SILÊNCIO.

MV

terça-feira, 26 de agosto de 2008

GRITO


Cai a tarde do andaime que a segura
esvoaçam as penas dos pardais
em rolos de vendaval
mancham o ar borboletas sem asas
apaga-se o sol na poeira formada
fogem aturdidas as cores das gardénias
fica prostrado o verde das árvores.
Ergo a minha sombra
com uma força desconhecida.
Agarro a tarde e sento-a no regaço.
Chamo os pardais
as borboletas
o sol
as flores
as árvores
e num rugir de leoa enfurecida grito:
“Ninguém me ata as mãos!
Ninguém me vence pelo cansaço!”

E a tarde brilha no meu regaço.

MV


segunda-feira, 25 de agosto de 2008

PANO DO PÓ



Acordei o sossego da tarde. Vou fazer limpeza à casa. Urge limpar o pó. Rejeitei o habitual aspirador. Escolhi o melhor pano do pó.
Esvaziei a estante cheia de futilidades. E pus o pano a limpar. Limpei até me doerem as mãos. Começaram a vir agarradas ao pano muitas teias, tecidas com o que sinto hoje no peito. Descanso, olho o pano e vejo letras, muitas letras numa dança frenética para se agruparem. Conseguiram. Palavras, muitas palavras vão surgindo: “ausência, ternura, incerteza, chama, insegurança…” Páro de ler. Abro a janela e sacudo o pano. Vejo voar uma palavra que não sei se conheço. E não me importo. Deixo-a voar até desaparecer.
Quero voltar a pôr tudo na estante, como estava antes. As mãos recusam-se. Os sentidos renunciam a arrumação. Zango-me. Pego em tudo e atiro de qualquer maneira, sem eira nem beira.Surpreendo-me com este momento estranho… cada coisa foi instalar-se no seu lugar. Sem saber que fazer vejo, em jeito de asa esvoaçante, a palavra Amor a arrasar os meus cabelos. Tento apanhá-la para a deitar fora. Não sou capaz. Instala-se na estante com letras triunfadoras.
Pego outra vez no pano, dobro-o em quatro e arrumo-o no seu espaço. Sento-me cabisbaixa e deixo vir o pensamento em voos livres.
Não vale a pena limpar o pó.

MV

sábado, 23 de agosto de 2008

NÃO CONSTA DO DICIONÁRIO


Recolho com as mãos já ásperas

a gota desfalecida

que se escapa destes olhos cansados

e enfadados de tanto procurar.

Toco-lhe e não sei que interpretação lhe hei-de dar.

Passeio os dedos pelo dicionário.

Verbo, nome?

Masculino, feminino?

O dicionário, em dilúvio de choro,

deixa cair uma lágrima acanhada

fecha a página molhada e rota

e entre soluços diz

“não tenho o significado da palavras gota.


MV

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

PROBABILIDADE


Era uma lua de água
e os olhos ficaram-me molhados.
Era uma lua de sol
e o peito ficou-me incendiado.
Era uma lua de gelo
e as mãos ficaram-me paralisadas.
A lua de prata, essa sim,
na imensa palidez da noite
continua a saber enlear os raios
na probabilidade dos meus desejos.

MV

terça-feira, 19 de agosto de 2008

ASAS DE SEDA


Nasceram-me asas de seda

no coração e no pensamento.

Com elas

acreditei que a pedra da calçada

podia ser quartzo.

Acreditei que o asfalto no Verão

podia ser fogo dentro do meu peito.

Acreditei que o meu amuleto

podia ser um segredo falado.

Acreditei que a luz desmascarada da lua

podia ser o meu cálido palácio.

Acreditei que o ar sereno das noites

podia ser a espiral aberta dos meus anseios.

Acreditei que as letras das palavras deitadas na mudez

podiam ser a volúpia do meu corpo.

Acreditei que as estrelas

se podiam vestir com fios de verdade.

Acreditei, quando voava, mas sem certeza,

que um dia podia ser princesa.


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sexta-feira, 15 de agosto de 2008

QUERO


Não quero incertezas bordadas a tormentas

Não quero pele queimada pela inquietação

Não quero fios tecidos com limalhas

Não quero luzes a atraiçoar o fulgor da vida

Não quero sonhos sonhados em lençóis de mágoa

Não quero brindes feitos em taças de fel

Não quero poemas de palavras sem rima

Não quero paletas sem cores de matizes sonoras

Não quero músicas que acordem a noite do corpo

Não quero tábuas talhadas nas fresas da incerteza

Não quero mais emoções a dar vida à saudade.

Quero o que não quero


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quinta-feira, 14 de agosto de 2008

ROSA

Meio-dia já a descansar.

Pés afadigados.

Um silêncio fechado.

Roseiral a pintar o momento.

Olhar já gasto preso na rosa encarnada

de cheiro a embebedar, de cor a viciar.

Sem lágrimas

a rosa deixa-se colher.

Esfarripa o silêncio

inventa segredos.

Sobrevoa o oceano.

Agita as ondas

em limalhas dúbias.

Desembarca.

Ilustra uma página

cedendo-lhe o corpo.

Num marcador

compõe uma história musical

ainda por cantar.

Foge na poeira da tarde.

Viaja agora por terra

para noutras mão descansar.


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segunda-feira, 11 de agosto de 2008

HOJE É URGENTE

Hoje é urgente

arremessar na noite palavras ao vento

rasgar a roupa que as asfixia

perfurar e apedrejar este fio de tempo.

Hoje é urgente

gritar letras e palavras adiadas

a envelhecerem ao meu lado

sem freio, pelas rugas já talhadas.

Hoje é urgente

deixar a caneta errar ao relento

pegar nas letras que gotejam

nesta voz matizada de cinzento.

Hoje é urgente

soltar palavras neste ar constelado

deixá-las partir à bolina

libertar este grito de gemido apertado.

Hoje é urgente

gritar palavras ao vento

e talvez a lua traduza este grito

e me devolva pela manhã

uma cerimónia de palavras em rebento.


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sábado, 9 de agosto de 2008

SONHOS

Chama por mim um lugar
longe daqui, longe deste tempo.

Chama por mim a eira
onde punha o pensamento a desfolhar.
O carreiro de pedras
onde ao deitar da tarde
desfilava sonhos em cartas de marear.
A horta em mancha esmeraldina
onde colhia as couves
que ao fosco da tarde e já em surdina
me davam de cear.
O forno de lenha a crepitar
à espera do pão de centeio
com que me havia de deliciar.
Era menina com sonhos entrançados
presos com elásticos inquebráveis
Hoje, mulher, ainda entranço sonhos
por vezes, presos com elásticos já cansados.

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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

PALAVRAS - II

Palavras em preto
na planície do branco desguarnecido,
lapidadas com discos de cristal
sorvidas com a força da espera.
Foram nascente de fonte
em correria contra o tempo.
Foram sal num manjar oriental
numa rota de especiarias.
Foram ramo de papoilas e trigo
em mão de noiva perfumando o altar.
Foram taça de cerejas de vermelho a abrasar
na vitrina expoente de um pomar.
Foram desfilando agitadas
nas rugas desenhadas pelo tempo.
Pararam.
Abrigaram-se num retiro de intimidades
aninhando-se em sossego.

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quinta-feira, 7 de agosto de 2008

PRISIONEIRA

Algemei-me sem a minha permissão
sem cúmplices… ou talvez não.
Algemei a geografia do meu dia a tempos de espera.
Amarrei as palavras que não queria
ao traço dos meus poemas.
Prendi-me ao silêncio da noite sem portas
às histórias gaguejadas a medo pela lua
à incerteza das palavras regressadas.
Em vão tento tirar as algemas de aço e de fel secreto.
Ecoam gritos em desassossego.
O olhar esvoaçou pelo tempo cansado.
Passos perderam-se em sendas por encontrar.
Apertei as algemas sem o saber.
Aprisionei-me nos dias sem luz
nas cartas com tanto por contar
no túmulo inacessível ao peso dos olhares.
Aprisionei-me.
Doem-me os pulsos macerados pelas algemas
que me apertam no presente e no futuro.
Enquanto as algemas não tirar
sou prisioneira a resgatar.

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quarta-feira, 6 de agosto de 2008

PERCORRO-ME

Percorro-me por carris de ferro infindos
nesta luta inócua de sentimentos sem freio
sob um tecto de palavras semeadas ao vento
sobre um chão de terra atolada de pântanos.
Às vezes fundeio no colo do limo cinzento
ou na grafia agreste de palavras apedrejadas
às vezes ergo-me no repenicar sinfónico de um sino
ou na morfologia da gramática sem forma.
E assim neste tempo sem tempo
onde as horas não assomam
continuo a percorrer carris de ferro sem fim
à espera de matar o meu percorrer.

MV

terça-feira, 5 de agosto de 2008

PALAVRAS -I

Tombaram do azul da noite
palavras presas nas sílabas do calor
cantadas em auréolas de fogo quente
atadas com fio de chamas vibrantes.
Arrastavam uma sombra
de pedras quentes
e de ondas a inflamar,
uma cauda de temor
a macular a alvorada de amanhã.
Eram palavras cheias…
que eu quis despir
na crepitação do amor
nos estalidos dos sonetos.
Não fui capaz!
Serpentearam-me no peito
nos olhos, na boca, nas mãos
nos trilhos apertados do desejo
nas veredas aveludadas de saudade.

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domingo, 3 de agosto de 2008

ROTA VAGABUNDA

Desviaram-se as pedras de granito da calçada
abriram-se as cortinas do vento em alas sossegadas
afastaram-se em sorrisos azuis as ondas do mar
suspenderam a respiração os peixes lagunares
acendeu-se mansinho a luz do sol
as flores silvestres pararam o baile real.
Os raios da lua baixaram verticais
para me levarem a viajar.
Pedras, vento, ondas, peixes, sol, flores, lua
desenharam uma rota vagabunda
para eu embarcar numa viagem
em que o amor não podia viajar.

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sábado, 2 de agosto de 2008

SE EU FOSSE UM NOVELO

Se eu fosse um novelo
era feito de fios de ternura
que desenrolava
para tecer uma manta
de cores vivas de esperança
e de sabores de me encontrar.
Tapava as lágrimas
que abrem o meu chorar,
cobria os cinzentos
da ambiguidade da minha vida,
prendia os braços
que teimam em agarrar os sonhos
que não me deixam descansar.
Tapava tudo o que me inquieta
e fazia as minhas palavras gritar:
nunca mais te vais voltar a enovelar.

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sexta-feira, 1 de agosto de 2008

EMENTAS A “CRITICOBRINCAR”

Apenas um pouco de ironia e nenhuma outra pretensão.

RESTAURANTE DE LUXO

MENU
política sem vergonha a despolitizar
futebol com apitos dourados a engrossar
Fátima (santuário) a comercializar
televisão a desinformar
banqueiros e afins a engordar
pedofilia a desfilar
guerra a disparar
SOBREMESA
Por favor, um pouco mais
preciso de engordar.

RESTAURANTE DE “DESLUXO”

MENU
sopa de caldo a fervilhar
barrigas com fome a estalar
desemprego a atulhar
prestações por saldar
cartões-cama a abundar
casas a empenhar
fábricas a encerrar
roupas dos chineses a comprar
férias há muito por gozar
doentes sem médico a definhar
SOBREMESA
Não, obrigada
não quero mais
já estou a rebentar

PAPOILA MULHER

Descansa vento!
O vento amaina aos brados da papoila.
Papoila escarlate, papoila mulher.
Em trejeitos de nuvem acabrunhada
baixa as pétalas para se mostrar.
Admirada a lua enrubesce
acanham-se os olhos da noite
a rã coaxa em voz sumida
as cigarras abrigam o canto nas asas
a noite turva-se em pretidão.
A papoila muito corada
cerra os olhos envergonhados
e dança… dança …
de cara destapada.

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