segunda-feira, 29 de setembro de 2008

ANTEVISÃO

A luz das inúmeras sílabas apagou-se

e sem aviso

morreram as palavras de veludo.


Vesti os olhos de cor preta

adornei os meus vestidos

com laços de noite escura.


Guardei as mãos desmaiadas

nas luvas do silêncio.


Desbotaram-se as flores da ternura

correndo em desvario

para o colo da terra.


Enterrei fundo, bem fundo

a pele que começou a doer.


Cerrei o sorriso nas páginas molhadas

de uma folha da minha vida.


MV

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

SE EU FOSSE ALGUÉM...

Se eu fosse alguém

entrava em mim

e a mim me demitia.

Rasgava as telas que à noite “pinto”

com pincéis molhados em desassossego.

Apagava as tempestades

que nos quadros difusos retrato.

Riscava a azul, em jeito de censura,

as palavras que construo

com sílabas desordeiras.

Se eu fosse alguém

calava os silêncios que me sufocam

na voz de tantas palavras.

MV

terça-feira, 23 de setembro de 2008

VAGAS

Galopam selvagens quebrando a paz da areia.

Encostam o ímpeto que trazem na espuma

às rochas inertes gastas pelo tempo.

Acordam sonhos presentes

(que não dei conta de amanhecerem)

numa voz que os segredos agasalham.

Trazem uma história escrita em voz frágil

- frágil como este entardecer -

com personagens que quis inventar.

Vejo-a imiscuir-se no seio da água

e fico inquieta na clareira

que as ondas desenharam no chão da areia.

Olho as nuvens em sobrevoo das vagas

e fixando a expressão triste do teu olhar

dactilografo palavras na água do mar.


MV

sábado, 20 de setembro de 2008

PARCÓMETRO DA VIDA

Reflexão de mais um acordar


Aquela flor que eu hoje tinha para te dar

ficou presa em jaula de florista

com lágrimas a deitar.

Não tive tempo de a comprar.

Recolhi à pressa o olhar

não percebendo a dor da lágrima

vincada no teu rosto e, por mim,

há tempos, a implorar.

Não tive tempo de nela reparar.

Não levantei o braço para te fazer adeus

e fiz dos meus lábios múmias,

em recusa de te sentir.

Não tive tempo para te sorrir!

Não tive tempo!

Adiei o tempo para amanhã!

É que naquela praça

que eu hoje vi ao acordar

está instalado um parcómetro

que sem eu saber

me diz o que hei-de ou não fazer.

Se eu a ele me recusar

tenho às costas uma multa

que eu, mesquinhamente,

não quero pagar.

Esta caixa de metal

em que hoje reparei

é, afinal, o parcómetro da vida

que insiste em traçar o caminho

do que eu tenho que fazer.

Não há tempo para pensar…

o parcómetro está a contar

e eu não tenho tempo

para uma multa ir pagar.


Inteligente o Homem que inventa máquinas que nos engolem o tempo, que nos atam as mãos, os olhos, o coração?

E se nos deixarmos controlar por este parcómetro da vida, não será mais alto o preço da multa que, um dia, iremos pagar?


MV

terça-feira, 16 de setembro de 2008

NÃO SEI

Nesta cama solitária

cansada do peso de outros corpos

escondo o rosto no canto das ondas.

Num rebentamento de pensamentos

talho moldes de palavras

que experimento no teu corpo.

Alinhavo… aperto… alargo…

baixo bainhas… levanto bainhas…

Com as mãos já frágeis

faço e refaço moldes

e mesmo assim

não sei a medida certa

das palavras que hei-de costurar

quando a cor da madrugada aparecer.


MV

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

NEGAÇÃO

À luz sublime da lua
entre um e outro pensamento
em minutos fugidios
asas sem corpo rompem o ar sereno
e desfloram espaços vazios.
Alongo o tempo…
afago a sacarina do teu olhar
experimento as tuas mãos trovadoras
soletro as letras do teu nome
hasteio os sentidos bem alto
num mastro de negação a fraquejar.

MV

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

ARTESÃ



…E sento-me cá em baixo. Como se estivesse lá em cima. Com os olhos ávidos lá de cima.

Olho. E sinto o vento a atravessar o olhar. E é ele que me leva o olhar por muitos caminhos lá em cima. Caminhos que estão sozinhos, ou mesmo que não existem.

O olhar parou lá em cima. Ficou lá naquele espaço ilimitado. Não sei se hoje é azul ou branco, porque vejo muito azul e muito branco. Não sei mesmo se o azul mora no branco, ou se o branco mora no azul. Sei apenas que essas duas cores marcam o céu, que está calmo. Muito calmo.

O branco mexe-se. Quase parado. Molda-se em formas. Formas distintas, ou formas indistintas, sem contornos visíveis. Hesito o meu olhar. Não sei a qual delas me hei-de fixar. Resolvo-me. Agarro as nuvens a que os artesãos do céu ainda não deram forma.

E transformo-me eu numa artesã. A artesã das nuvens.

Sinto as mãos a mexer, mexo-as mesmo paradas. Ponho os olhos nas mãos e tento desenhar. Um avião interrompe-me o olhar, o desenho. Fixo-me no rasto. Atravessa as minhas nuvens. Sei que choram em silêncio. Sei que riem caladas. Foram atravessadas. Foram rasgadas em rasgões que não se vêem, mas que estão lá.

Depois já se esfumaram todos os rastos como se a noite os tivesse engolido.

Prendo-me outra vez nas nuvens. Desenho uma mancha branca. Prego-a ao olhar num trabalho difícil. Já não sou capaz de a soltar. Desliza como se estivesse quase parada. Quase como se não se quisesse ir embora. Fixo-a, não a largo. Dou-lhe corpo. Um corpo suave. E fico com ela cá dentro de mim. Dentro dos meus olhos.

Depois as mãos não sabem acabar de a desenhar. Vou escrevê-la. Vou dar-lhe palavras. É branca, muito branca, tem o corpo de quem já existe. Repousa. De costas. Vejo-lhe os braços. As pernas que já não existem. Foram percorrer outros caminhos, outras distâncias, outros olhares.Talvez um dia as cole neste corpo branco que hoje deixo dentro de mim. Não tem olhos. Mas eu vejo-os. São intensos e escuros, brilham melancólicos. Falam palavras numa linguagem que não entendo. Numa língua que resolvo inventar e que traduzo assim:

“Viajo. Viajo. Viajo neste azul. Não sei se é mar ou se é céu. Não importa. Viajo. Viajo as emoções. Viajo a noite e o dia. Viajo só e com os outros. Faço encontros encontrados e desencontrados. Viajo a minha vida. Viajo a vida dos outros. Encontro vidas. Desencontro vidas. Mas viajo. Viajo sempre. Procuro sentidos. Sim, sentidos que valha a pena serem vividos. Sentidos da vida.”

Largo os instrumentos de artesã das nuvens, pego nos instrumentos de artesã da vida. Guardo a nuvem dentro de mim. Levanto-me. E ponho-me a esculpir o sentido da minha vida.


MV


terça-feira, 2 de setembro de 2008

QUADRO


O sol rompe o céu
em franjas de azul e branco
inundando o clarear do dia
com mãos de promessas.
A lua já a esmorecer
desprende um fio débil
que cai numa aguarela de esperança.
Sol e lua, um duo perfeito
num quadro cobiçado.

MV